Primeira construção primeiro, o peso dos erros sobre acertos e mais lições valiosas para nós, Milito e o Atlético
Antes de mais nada, quero deixar claro que nada escrito daqui para baixo refere-se ao jornalista Guilherme Frossard. Óbvio, não fosse sua pergunta, não haveria texto, mas a ideia me bateu mais de 24 horas depois do episódio, e por outros motivos. Sou da ideologia contrária dos “tudólogos”, não acho que devemos necessariamente ter opinião sobre tudo e qualquer coisa, muito menos que devemos emiti-las. Apesar, contudo, todavia, mas, porém, já que toquei no assunto, o questionamento não foi nada além de pertinente, enquanto a resposta (e a forma como ela foi dada), ao menos na minha interpretação, deu a impressão de que Milito, inteligente que é, puxou o foco para ele, defendendo suas ideias, mas, sobretudo, seus jogadores que falharam e continuarão falhando. Se ambos os lados tiveram a melhor expressão, aí é outra história (a qual eu não tenho nada a ver).
Voltemos ao básico. Todo modelo de jogo que priorize a posse da pelota tem fundamento na capacidade de iniciar bem o jogo. O conceito da primeira fase de construção no momento ofensivo – a famosa “saída de bola” – é começar o ataque no primeiro terço de forma que leve à criação de espaços para proporcionar a chegada em condições mais favoráveis a segmentos do campo que permitam a finalização. Ou seja, tocar a redonda até que a marcação adversária ceda uma brecha, ganhar território, se aproximar da área e concluir a jogada.
Todos os jogadores do elenco do Atletico estão familiarizados a isso. Como equipe, a maioria pratica há mais de quatro anos. Isso, inclusive, foi um dos principais fatores para a rápida adaptação ao modelo de Milito. O time de 2021 tinha como pilar a saída limpa, com muita agilidade na troca de passes, preferencialmente, atraindo a marcação até a grande área, criando a sensação do “contra-ataque do contra-ataque”, pela conclusão rápida da transição ofensiva, encontrando o campo aberto depois das linhas de marcação deixadas para trás com passes verticais. Com Sampaoli, Cuca, Turco, Cuca de novo, Coudet e até Scolari, o Galo sempre teve muita competência para começar o jogo. Podemos lembrar algumas vezes onde uma falha foi castigada, justamente porque foram poucas vezes. Não quer dizer, no entanto, que isso não tenha acontecido.
Eu penso muito. E eu estou cada vez mais convencido de que isso é um defeito. Ultimamente tenho pensado ainda mais do que o de costume, na verdade. É preocupante. E eu penso muito sobre meus erros, algo natural para pessoas com algum transtorno de ansiedade. Acho que vem da nossa mania de insistir em tentar medir o imensurável, mas ainda não me conformo como um único erro pode anular a existência de todos os seus acertos. Me incomoda também a direção dos dedos. Tem muitos caçadores por aí que se dariam bem corrigindo redações do ENEM. O que é bem feito passa despercebido, um descuido toma caneta vermelha.
Um jogador passa de um minuto e meio a dois minutos com a bola no pé por partida, em média. Se você jogar no Galo de Milito, a “nota de corte” sobe um pouquinho. Falando em agir com a bola, são cerca de 60 ações por jornada. No Atlético, isso vai a 70, 75, também em média. Mas os homens da primeira linha, especialmente, registram em torno de 80. Alonso, o cara que segura mais a menina no Alvinegro, estoura 90 ações com ela em determinadas ocasiões. “Mas o que isso quer dizer na prática?” Que bom que você perguntou, Padawan. Os dados escancaram que os “defensores” do Atlético acertam muito mais do que erram. Um erro deles, entretanto, pesa muito mais do que um erro dos “atacantes”, que, pelo contrário, erram muito mais do que acertam.
Vamos analisar o lance que nos trouxe até aqui, o gol do San Lorenzo que abriu o placar no Nuevo Gasómetro. Saravia tem a bola dominada e quatro opções de passe, cada uma apresentando certo grau de dificuldade, considerando a pressão do Ciclón. Mas, claramente, a melhor delas seria Otávio, que poderia se livrar mais facilmente do seu marcador e passaria a ter seis companheiros em condições de receber o passe, dois a mais que na origem (está acompanhando? “Condições mais favoráveis”).
Paulinho, que baixou demais e quebrou as linhas (sim, elas também são formadas no ataque), aponta onde quer receber a bola. Saravia, como naturalmente faria um lateral destro, se vira para fazer o passe com o pé bom, enquanto Battaglia, que faria a “sobra”, percebe que vai dar merda e pede que o time não se desorganize e desmonte a transição ofensiva. A posse foi perdida aqui. Já era. Não dá mais tempo. Pode baixar os braços, Rodri.
A ação de Paulinho gera uma reação em cadeia. O Arqueiro corre lateralmente para a bola e, completamente fora de função, segue para a posição que achou ter criado. Pelo meio, Otávio, como manda o manual, busca a diagonal oposta, tentando formar um triângulo. Mas Scarpa, que deveria descer para auxiliar Paulinho e Saravia e dividir a atenção do marcador, guarda sua posição, já pensando no término da jogada, porque Paulinho invocou o “deixa comigo”.
Ainda que desordenada, a movimentação até gerou o “espaço aberto que proporcionaria a chegada a segmentos mais avançados do campo”, mas a má execução impediu a sequência da jogada.
A turma realmente tem errado um pouco mais do que o costume nos últimos jogos. Todos da primeira linha mantém um aproveitamento superior aos 85% nos passes curtos. Mudanças e tentativas de Milito influenciam diretamente no que acontece em campo. Alonso, que tem dominado o lado esquerdo, cometeu erro parecido na sua estreia, em uma de suas primeiras ações quando vestiu de volta o Manto. Vimos formações com Lyanco e Battaglia, Lyanco e Fuchs e Fuchs e Battaglia, e todos erraram. As engrenagens só voltaram a girar de forma mais fluida quando Saravia, que também tem sua cota, regressou ao time.
Falávamos de zagueiros e laterais, passamos a denominar este grupo “sistema defensivo”, adicionamos a ele um ou dois volantes, termo que caiu em desuso, sendo substituído pelo “momento (ou fase) defensivo”, porque o time todo participa dele – você entendendo ou não quando os próprios jogadores simplificam com a expressão “a defesa começa com os atacantes”.
O trabalho nos treinamentos, além de diminuir o número de erros, é feito para que eles sejam minimizados, algo que passa muito pela antecipação de cenários do jogo. Vacilei feio ontem. Não prestei muita atenção na primeira pergunta respondida por Milito na coletiva e, ao informar o que o treinador analisou após a partida, subverti o que ele disse. Peço desculpas ao leitor. Como um técnico muito elogiado por sua capacidade de planejar jogos se surpreenderia com a postura de um time argentino jogando mata-mata de Libertadores?! Só o Hugo mesmo…. Saravia errou o passe. Quando parei para observar todos os aspectos, passei a acreditar que ele pecou pelo automatismo e excesso de confiança (assim como no meu caso). Veja, os erros cometidos por Paulinho e Scarpa foram muito mais graves, mas vai para a conta de Renzo, o cara que cometeu o erro que mais salta aos olhos, que não fez o que seria o mais “simples”.
Por que, então, mesmo com o costume, o entrosamento, o treinamento, a automação desses mecanismos, mesmo com a prevenção, a antecipação, a preparação e mesmo com a sustentação dos números, a primeira construção do time de Gabriel Milito tem se desajustado em determinados momentos das partidas? A resposta, apesar de envolver diversos fatores complexos, é simples: por mais que eles passem apenas 2% do tempo com a bola nos pés e 98% pensando (ou deveriam), os jogadores tomam centenas de decisões em frações de segundos, decisões essas que são condicionadas pelas decisões anteriores, estando passíveis de tomar uma decisão errada a qualquer momento. A falha de Saravia no gol do San Lorenzo, especificamente, só aconteceu por uma falha anterior muito mais grave, de alguém que não participou da jogada que terminou com a bola na rede.
Minutos antes, com Scarpa fazendo o que não fez no lance do gol, com Paulinho no lugar onde deveria estar, com Otávio se movimentando para o lado inverso para abrir espaço e criar opções e com a defesa à Lavolpiana da mesma forma, com tudo mais encaixado do que no lance do gol, Fausto Vera esperou a bola no pé, perdeu tempo no domínio, quando poderia ter acionado Renzo de primeira.
Na tentativa de proteger a posse para esperar ajuda com a aproximação de um companheiro, ele tenta girar o corpo e segura a bola, dando mole para a marcação.
Com a carteira batida, fica pelo meio do caminho, obrigando Otávio, de forma instintiva, além de perseguir o ladrão, fechar o espaço que deveria ser ocupado pelo argentino, para que a transição defensiva se complete. Vendo que Otávio não seria capaz de chegar, Saravia abandona seu setor e corre para o centro.
Quando sai o passe nas costas de Saravia, ele já está vendido, pois era o único que precisaria se virar de volta para ver a jogada de frente. Battaglia tenta cobrir Saravia, Alonso tenta cobrir Battaglia – e fica com dois -, Otávio tenta impedir a inferioridade numérica, enquanto Fausto se levanta, vê o que aconteceu e percorre menos de 10 metros.
Vendo que o lado mais forte dos donos da casa era o esquerdo, há um reajuste. Otávio inverte com Vera, que se posiciona mais à esquerda, onde passou a ter apoio de Arana, que se postou um pouco mais, dando a ponta para Bernard, que trocou de lado para deixar na direita Paulinho, que é mais rápido e mais atlético, com mais condições de escapar nos momentos onde o autor do cruzamento do gol deixaria o lateral-esquerdo no mano a mano. O posicionamento que o time tinha quando sofreu o gol. Não significa que Vera seja o culpado. Na verdade, foi um desses ajustes (ou reajuste) que permitiu o gol de empate. Tomei essa jogada como exemplo para tentar mostrar que o futebol é muito mais do que o que acontece quando você está vendo a bola.
Quando pensamos e observamos de forma mais ampla e detalhada, não é tão difícil assim enxergar. É o princípio da análise tática. As movimentações de um jogador condicionam as movimentações do seu time, que condicionam as movimentações do outro time, que condicionam o jogo. O trabalho da comissão técnica de Milito – e de todo treinador que se preze – consiste em preparar seus atletas para agirem e reagirem a essas movimentações. O jogador precisa se preparar física, técnica e mentalmente, além de ter a capacidade de leitura tática e percepção do campo, para conseguir quebrar as estruturas montadas pelos adversários, bem como criar soluções para quando eles quebrarem as suas estruturas.
Sobre os erros, eu não sou idiota e pretensioso a ponto de equiparar um erro bobo a um erro capital. A grande questão é a forma como se reage a eles. Ainda não está claro? A turma do Mariscal está preparada para errar. Alguns erros serão castigados, mas é do jogo. É aquela velha história do centroavante que só faz gol de pênalti e todo mundo fala. Vai lá, bate e perde para ver só o que acontece.
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