Por: Silas Gouveia
O mundo do futebol tem sofrido grandes mudanças, principalmente nas últimas décadas. Se até os anos 80 quase não se viam alterações impactantes neste esporte, o que pudemos observar foi uma enorme e crescente mudança a partir da década de 80. Em todos os aspectos pudemos observar mudanças significativas, embora pelo ponto de vista das regras, nem tanto assim. Pelo menos não, em comparação com os tempos atuais, onde inúmeras mudanças inclusive de regras, tem sido implantadas. A International Football Association Board (IFAB) é o órgão que regulamenta as regras do futebol. Foi criada no dia 6 dezembro de 1886 com 13 regras básicas e genéricas – hoje são 17.
Muitas delas discutíveis, outras que vieram como temporárias e acabaram se fixando, como a possibilidade de até cinco substituições, desde que restritas a três interrupções de tempo. Sempre bom lembrar que até 1970, nenhuma substituição era permitida e a primeira vez que houve uma substituição de um jogador foi na Copa do Mundo de 70, mais especificamente numa partida entre México e a extinta União Soviética. A partir deste Mundial foi implantada a regra que permitia até duas substituições por partida. E no mesmo Mundial foi implantada a regras dos cartões, Amarelo e Vermelho. Somente em 1995 a IFAB alterou o número de substituições permitidas, passando para três. Com o advento da Pandemia, foi autorizada a troca de até cinco atletas por partida, tendo em vista o desgaste por vezes brutal que acometiam os atletas que haviam sido contaminados pelo Coronavirus. E foram vistos benefícios suficientes para que a regra temporária se tornasse permanente.
Se, por um lado, as regras em campo sofreram poucas porém relevantes alterações, fora das quatro linhas as mudanças vem sendo cada vez mais frequentes, abrangentes e por vezes, imprescindíveis. As principais mudanças vieram não somente do ponto de vista esportivo, com a implantação de metodologias de análises de desempenho e também de estudos de esquemas táticos e de estilo de jogo. A profissionalização do futebol veio empurrada pela necessidade de um retorno financeiro de quem trabalhava com o esporte. Não era mais apenas uma questão de disputa esportiva, mas sim a disputa por prêmios e vantagens, muito além de taças e troféus. Os patrocínios, inicialmente tímidos e restritos ao campo do evento principalmente aqui no Brasil, se transferiram para os uniformes e chegou até diretamente ao atleta. O dinheiro é a mola que impulsiona o mundo e no campo esportivo e futebolístico não seria diferente. Afinal o futebol é o esporte mais popular do mundo e não podia ficar de fora disto.
A profissionalização da gestão do futebol veio basicamente como uma necessidade de sobrevivência do esporte mundo afora. Os campeonatos precisavam ser mais atrativos como espetáculo, para prender cada vez mais a atenção de espectadores. E para isto, foram necessárias alterações em termos de quem organizava o futebol nas principais ligas esportivas, juntamente com a mudança de mentalidade dos dirigentes. A Europa iniciou este processo, talvez não da melhor forma possível, mas foi onde as mudanças ocorreram mais rápida e eficientemente. Claro que estas mudanças inicialmente podem ter trazido discrepâncias gigantes entre clubes e até países, mas aos pouco estão sendo adequadas de forma a buscar uma harmonia entre as principais ligas e clubes. O Fair Play financeiro veio no rastro de uma necessária correção de rumos, visando coibir o uso indiscriminado de recursos financeiros e práticas abusivas de mercado, embora ainda não seja o melhor dos cenários possíveis.
No Brasil e em toda a América Latina, a profissionalização da gestão do futebol ainda caminha trôpega e demonstra sinais saltitantes e esporádicos de boas iniciativas. Alguns clubes buscam o caminho desta profissionalização, mas não há consenso e muito menos um modelo viável e seguro para que a maioria dos clubes possa seguir como exemplo. Cada um busca, dentro de suas realidades financeiras e esportivas, criar modelos quase que exclusivos de implantação de gestão profissional em seus clubes. Mas como a realidade financeira e de investimentos é algo absurdamente discrepante no Brasil e também em vários países da América Latina, raramente o modelo adotado por um servirá de exemplo para o outro. E neste caso ainda temos a questão da disputa entre os próprios clubes, onde cada um enxerga seu concorrente como inimigo e não apenas como adversário.
A prática mercadológica de comércio, por exemplo, trata os adversários como concorrentes e usa desta situação como propulsão para implementação de práticas e atividades de mercado, como forma de crescimento constante, em busca de um nível cada vez maior de atendimento às expectativas e metas criadas e traçadas pelo corpo dirigente das empresas. Ou seja: se meu adversário (concorrente) está crescendo e tendo mais resultados, o que eu posso fazer para melhorar meu rendimento e voltar a competir e até mesmo ultrapassá-lo, em um período determinado de tempo, o qual não pode ser extremamente longo que acabe me asfixiando, mas também não pode ser tão curto a ponto de me fazer adotar práticas insustentáveis ao longo do tempo? O exemplo foi do comércio, mas se aplica a qualquer tipo de mercado que necessita de resultados financeiros para sobreviver.
O planejamento de cada clube, deveria conter em seu escopo também a perspectiva de mercado e a avaliação da situação dos adversários, enxergando-os como concorrência e não como inimigos, pois isto é uma necessidade mercadológica. A união de pontos convergentes de cada clube, deveria ser maior que a separação por pontos divergentes, sem com isto pensar em tratar diferentes como iguais. Os objetivos de cada um podem e devem ser diferentes, embora todos busquem alcançar como meta, talvez intangível, o posto principal do mercado algum dia e se os demais não fizerem por onde. Como exemplo, o comércio varejista dos bairros, tem o mesmo objetivo que o comércio das grandes redes varejistas da cidade. Entretanto, seu orçamento e estrutura administrativa, já os separam um do outro no mercado, sem a necessidade de uma disputa por posições ou pontos comerciais. Cada um sabe seu tamanho, espaço e objetivos e vão atrás deles. Mas isto não os impede de terem pautas comuns de harmonização de regras que afetam igualmente grandes e pequenos comerciantes.
A criação de uma Liga profissional de futebol para gerir o campeonato brasileiro deixou de ser uma utopia e passa a ser uma questão de sobrevivência. As divergências entre os clubes, principalmente sob a questão da divisão do “bolo das receitas” pode transformar o futebol brasileiro em um mercado irrisório e promover o afastamento gradativo do público dos estádios e também das audiências em transmissões. Em um país de dimensões continentais, não há condições de criar uma liga que beneficie apenas os maiores clubes. Há de se pensar grande e de enxergar o adversário como concorrente e não como inimigo. Um torneio com apenas quatro ou seis clubes jamais terá a repercussão e o alcance de um torneio com vinte clubes em condições reais de disputa pelo título. Mas há de se levar em conta que mesmo com os vinte clubes na disputa, a briga pela liderança ou dos títulos, deverá continuar sendo entre alguns poucos. E todos são sabedores disto, embora todos nutram a esperança de que, algum dia e se derem um mínimo de espaço, aquele pequeno e modesto clube irá brigar para ocupar os principais postos ou colocações. E isto é imprescindível para o crescimento e sucesso de todos. O sucesso de seu concorrente deve ser encarado como um desafio para que você corrija suas práticas e volte a liderar no menor tempo possível. E se não for assim, a acomodação o fará desaparecer por inanição, mais cedo ou mais tarde. Concorrência é saudável e estimula a todos.
Mais que isso. A concorrência no meio do futebol é parte do negócio. Não existe torneio com um único time – o adversário faz parte do jogo. É preciso competir. Mas a competição é dentro do campo. Fora dele, é essencial que os gestores compreendam as relações de dependência que existem entre os clubes. Mais uma vez, não existe torneio com um único time. E a concentração de força que já ocorreu nos torneios estaduais no Brasil e hoje é vista nos torneios nacionais europeus é péssima para todos. Ter quase a certeza do campeão tira o interesse do público e afasta patrocinadores. Então, além de competir em campo, é preciso cooperar fora dele. A grandeza dos torneios requer que dirigentes compreendam que podem crescer juntos, que há interesses comuns e que uma liga forte só existe se existirem clubes (no plural) fortes. Os americanos já viram isso e mostram, ano após ano, como NBA, MLB, NHL e, especialmente, NFL se tornaram referência em gestão esportiva – e atenção à MLS.
Os gestores de futebol no Brasil ainda se portam, com frequência, como torcedores com acessos privilegiados. Enquanto se preocupam em postagens provocativas em redes sociais, entrevistas que estimulam a violência e comportamentos absolutamente inadequados para quem está à frente de instituições que faturam milhões, poucos se preocupam em exercer seu papel profissional, de buscar soluções e alianças para o crescimento do negócio e do próprio clube. Poucos efetivamente tem capacidade e conhecimento de gestão. Poucos se interessam por realmente implantar boas práticas comuns em outros negócios.
O futebol evoluiu. As regras do jogo mudaram. O negócio futebol mudou. Os investimentos mudaram. Passou da hora dos dirigentes brasileiros mudarem.