A SAF sem paixão
Por: Silas Gouveia e Denilson Rocha
Muito vem sendo dito, falado ou comentado nas redes sociais e na imprensa de uma forma geral sobre as SAF´s (Sociedade Anônima do Futebol). E de repente apareceram milhares de especialistas em SAF’s, prontos para dissertar sobre temas até pouco tempo desconhecidos da maioria das pessoas, como “valuation”, “duediligence” e tantos outros termos especializados de finanças e valor de mercado de empresas.
Entretanto, poucos são aqueles que buscam estudar melhor os assuntos e tentam ir a público falar abertamente sobre SAF e os temas relacionados ao processo de criação deste tipo de empresas. Lembrando não havia impedimento para existência de clubes com modelo empresarial no Brasil (inclusive, já existiam), a lei da SAF apenas trouxe uma modalidade diferenciada para estimular a mudança nos clubes de futebol. Porém, a Lei das SAF´s é bastante recente (Lei 14.193 de 06/08/2021) e ainda carrega consigo muitas dúvidas e questionamentos legais, que acabam causando uma insegurança jurídica enorme, tanto para os clubes, como para os possíveis investidores.
Os possíveis investidores possuem várias opções disponíveis no mercado, que incluem algumas que lhe darão retornos mais modestos, mas lhe oferecem uma garantia muito maior de seu retorno que outras. E alguns, que apesar de oferecer uma maior rentabilidade ou retorno financeiro, oferecem também grande risco de fracasso futuro. É a tradicional fala de “quanto maior o risco, maior o retorno”. Se você fosse um investidor, qual dos investimentos você iria aplicar seu dinheiro? Creio que quase 90% iriam preferir não arriscar muito e ter maior garantia de retorno, apesar de menor lucratividade, do que a opção de uma possibilidade de maior retorno financeiro, mas com alto grau de risco de perda dos valores investidos. Assim é com as SAF´se poucas pessoas param para pensar nisto.
Quando se fala sobre assuntos ligados ao mundo empresarial, a paixão, que é o que move o mundo esportivo e principalmente o futebol do continente sul-americano, fica em segundo ou até mesmo em terceiro plano. E isto é quase inadmissível para os torcedores. Uma afronta! Um desaforo! E de fato, pela paixão, pensar em transformar seu clube do coração em uma empresa que visa lucro, chega a doer na alma. Mas para a maioria dos clubes endividados e que buscam a opção de criar uma SAF, esta é a verdadeira “Escolha de Sofia”.
Tentando sermos mais didáticos possível e sem deixar a paixão contaminar todo o contexto, buscaremos ser objetivos e usar uma linguagem de fácil entendimento para que, sendo ou não especialista ou conhecedor do assunto de Sociedade Anônima do Futebol, possam compreender melhor sobre o tema. Traremos também as definições da maioria dos termos utilizados neste tipo de negócio. Mas é bom lembrar que não estamos nos passando por especialistas no assunto.
Começamos pela criação da Lei da SAF e os interesses que levaram os congressistas a formularem e aprovarem uma Lei específica para Clubes de Futebol que queriam se transformar em empresas de Sociedade Anônima.
Esta foi uma Lei criada para tentar salvar clubes que estavam completamente afundados em dívidas e sem perspectiva alguma de se manterem viáveis por muito tempo. Dizem, inclusive, que esta foi uma Lei criada para atender aos interesses e para tentar resolver os problemas financeiros de um clube específico: o Botafogo-RJ. O então presidente da Câmara dos Deputados, o deputado federal Rodrigo Maia é torcedor declarado do Botafogo-RJ e sempre esteve à frente, mesmo que indiretamente, nas discussões para implantação de uma regulamentação para os clubes de futebol se transformarem em empresas. O objetivo seria atacar os fatores que levaram o futebol brasileiro ao colapso econômico-financeiro e incentivar a profissionalização do esporte. O Botafogo estava em situação drástica sob o ponto de vista de endividamento e sem capacidade de gerar receitas suficientes para quitar suas dívidas, grande parte delas ao Governo Federal.
Podemos dizer, então, que a Lei das SAF´s seria a única opção viável para clubes muito endividados que não teriam, sem algumas vantagens produzidas por esta nova Lei, condições de permanência na elite do futebol brasileiro – entendendo esta elite não somente a série A do campeonato brasileiro, mas também a série B. E tanto é verdade, que, dentre os mais importantes clubes de futebol no Brasil, os primeiros a se transformarem em SAF foram os que não conseguiam mais nenhum respiro financeiro para sequer se manterem na série B do brasileiro de futebol (Botafogo, Cruzeiro e Vasco). Clubes ajustados financeiramente sequer cogitam a possibilidade de se transformar em SAF, tanto os da série A, como da série B.
Estes três primeiros clubes que se transformaram em SAF tinham em comum uma situação de calamidade financeira e sem qualquer chance de mudança através dos meios tradicionais, de conseguirem sobreviver. Corriam sérios riscos de extinção e estavam disputando a série B do campeonato brasileiro, a exceção do Botafogo, que havia acabado de conseguir subir para a série A meses antes de se transformar em Clube Empresa. Mas o Botafogo não teria condições de se manter na Série A se não se transformasse em SAF.
Em resumo, excluindo os desesperados, somente agora começamos a ver o movimento dos clubes que buscam a SAF como uma mudança planejada para melhoria de gestão e recebimento de investimentos. E ainda é cedo para ter qualquer certeza quanto aos resultados.
Quais os principais atrativos para os clubes se transformarem em SAF?
1- Regime tributário – nos primeiros cinco anos após a constituição, a SAF está sujeita ao pagamento mensal de um tributo unificado, que é limitado a 5% sobre as receitas mensais, não contando com transferências de atletas. Depois do sexto ano, a alíquota cai para 4% e passa a incidir sobre todas as receitas da empresa, inclusive sobre as vendas de direitos econômicos de jogadores. São impostos bem inferiores ao que uma empresa tradicional paga no Brasil.
2- Reestruturação das dívidas – a lei criou um mecanismo que facilita a quitação de passivos. Se chama Regime Centralizado de Execuções, que é responsável por agrupar e ordenar o pagamento de dívidas trabalhistas e cíveis em um período entre seis e dez anos. É como criar uma “fila” para o pagamento, dando tempo para o clube pagar e garantia para o credor receber. Desta forma, o futebol fica livre do risco de penhoras e execuções de dívida.
3- Debêntures do futebol – é possível emitir debêntures do futebol, um título de dívida. O clube recebe pelas debêntures imediatamente e usa esse dinheiro para pagar suas dívidas. O comprador da debênture vai receber seu dinheiro de volta, com juros, depois de um certo determinado. Desta forma, os torcedores podem investir dinheiro na compra desses títulos e resgatar após dois anos. Esse dinheiro aportado pode ser usado para pagar despesas ou dívidas do clube-empresa por seus administradores;
4- Menor interferência política dentro dos clubes – a maior dos clubes brasileiros possui Conselhos Deliberativos com fortes divisões políticas internas, que dificultam as tomadas de decisões. A SAF traz duas opções: ou coloca um dono, que tem autoridade para tomar decisões sem pedir bençãos aos conselheiros, ou cria um modelo por ações, que adota boas práticas de governança corporativa. Em nenhuma das opções há espaço para os interesses políticos amadores.
5- Profissionalização da gestão do futebol – a Lei da SAF não traz, por si, mecanismos de controle ou exigências que gerem profissionalização. Em outras palavras, não tem nenhum artigo que defina o que é ser profissional e como deve ser a gestão. Mas a SAF carrega em sua essência a profissionalização. Afinal, ninguém vai querer comprar uma empresa para ter prejuízos e ser responsabilizado por algo que eventualmente dê errado.
Quais os principais riscos de se tornar uma SAF?
1- Os clubes, enquanto Associações Esportivas, não podem falir. Já como uma empresa de Sociedade Anônima, o risco de falência é algo a ser muito considerado;
2- Conhecimento que o investidor tem sobre o negócio. Caso o investidor não seja do ramo ou não tenha muito interesse pelo esporte, ele pode não dar a devida atenção no controle e planejamento do futebol. Deixou de ser a diversão de jovens nas universidades inglesas do século XIX e passou a ser um negócio multi bilionário em que o jogo é apenas uma pequena parte de uma gigantesca engrenagem. Não é só futebol mesmo!
3- Interesse do investidor. Existem vários objetivos distintos ligados ao futebol. Há o investidor que quer ampliar a visibilidade da marca. Também há o investidor que quer promover o seu país como incentivador do entretenimento e destino turístico. Ainda existe o investidor que tem um clube como “barriga de aluguel” para registro de atletas, já que a FIFA proíbe que empresários sejam “donos” de atletas. Mas também existe o investimento apenas para o desenvolvimento de jovens para, posteriormente, serem legados aos seus principais clubes associados na Europa. Além destes, é possível ter infinitos outros objetivos ligados ao futebol. Cada um deles leva a um modelo de clube diferente que pode ou não dar importância aos títulos nos campeonatos.
4- E, mais importante, alguns pontos da Lei ainda carecem regulamentação mais apropriada. Caso não ocorra, ou não seja vantajoso para o investidor, que pode até mesmo abandonar a SAF, como já ocorreu em situações similares em outros países.
Durante todo o processo de constituição de uma SAF, vários termos e conceitos serão trazidos ao torcedor, que não tem obrigação alguma de conhecê-los ou mesmo entender seus significados. Por isto, traremos a seguir alguns destes principais termos ou conceitos e seus significados.
Conceitos muito utilizados em negociações de uma SAF:
Valuation é um termo que, em português, é usado para definir “avaliação de empresas”. É um processo que usa vários indicadores, cálculos matemáticos e outros elementos mais ou menos subjetivos para determinar o preço justo de uma companhia. A grande maioria dos consultores financeiros usa a técnica do Fluxo de Caixa Descontado (FDC) para calcular um valuation. Esse é um cálculo matemático que faz uma projeção dos lucros da empresa no futuro. E aí já vem uma dificuldade para o futebol, que, até mesmo por ainda serem associações sem finalidade lucrativa, raramente gera lucros. Mas existem diversas outras formas de se chegar ao valor de uma empresa. Algumas delas por metodologia de comparação com outras empresas do setor. Acontece que, por ainda não haver um cálculo base para clubes de futebol, tem sido evitado este formato de avaliação.
Importante salientar que o valuation é sempre uma estimativa do valor de uma empresa. Além disso, o número encontrado pode variar dependendo de quem faz a avaliação e da metodologia adotada. Os resultados reais da empresa também podem ser diferentes do que foi previsto nos cálculos e, assim, acabar afetando o valor da empresa no mercado.
No final, quem vende pode colocar o preço que deseja, mas é quem compra que estabelece o valor e o quanto está disposto a pagar.
Due diligence, ou “diligência prévia”, é o processo em que são levantados vários tipos de informações sobre uma empresa que pode ser adquirida, fundida ou estabelecer parceria com outra organização.
Essas informações envolvem a contabilidade, patrimônio, questões jurídicas, processos, atividades, tecnologia, recursos humanos, perspectivas futuras e muito mais, para, principalmente, dar avaliar a veracidade das informações usadas para a definição de valor (valuation) e da capacidade de quem compra. Enfim, serve para dar segurança às partes envolvidas.
O resultado desse processo vai embasar a tomada de decisão: a partir do que foi levantado, vale a pena fechar o negócio? Os valores colocados são justos? O comprador tem capacidade de pagar (ou injetar recursos) como prometido?
Merger and Acquisititions (M&A) ou Fusões e Aquisições. Indica duas opções de operações societárias. A fusão é quando duas empresas se unem e formam uma nova companhia, e a aquisição que é quando uma organização compra outra e a incorpora em suas operações.
Non Binding Offer, ou Oferta Não Vinculante. Durante um processo de M&A é comum, após a aproximação inicial das partes, o processo evoluir mediante a chamada Oferta não Vinculante ou NBO (Non Binding-Offer), contida em documentos também denominados como Carta de Intenções (Letter of Intent “LoI”) ou Memorando de Entendimento (Memoradumof Undestanding “MoU”), que expressa a convergência de vontades das partes em evoluir na negociação, indicando as linhas mestras e as ações que serão tomadas em conjunto, visando uma possível transação. É uma proposta de negócio que ainda não estabelece obrigações para compra ou venda, mas encaminha os principais pontos da negociação (valores, prazos e forma de pagamento etc.).
Call option nada mais é do que o direito de comprar um papel no futuro, mas pelo preço estabelecido no presente. Vale ressaltar que a maior parte do que é negociado no mercado de ações (bolsa de valores) utiliza tal modelo, em que a negociação está comprando o direito de comprar a ação, e não a ação em si. Simplificando a história, a negociação de compra/venda é feita para uma data futura, com um valor projetado e uma opção ou obrigação de compra ou venda. Quando esta data chegar, as partes avaliam se o valor projetado foi alcançado e, então, existe a possibilidade ou a obrigação de concretizar o negócio.
O que é importante ser observado para a constituição de uma SAF?
Antes de mais nada, é preciso parar de observar a constituição da SAF a partir da perspectiva de torcedor. Quem compra e quem vende não está na arquibancada, está fazendo negócio. Deixemos de lado nossas paixões, nossos desejos e vamos avaliar racionalmente prós e contra.
Com a visão de negócio, é essencial compreender quais são os objetivos e os interesses de cada parte envolvida. O que o investidor da SAF procura ao adquirir sua participação? Vai investir para ter um clube vencedor nacionalmente e reconhecido internacionalmente? Vai desejar competir para ganhar os títulos? Ou vai apenas usar para formação de jovens ou transição para levar atletas para outros de seus investimentos na Europa?
Definido o objetivo, o que será feito para alcançá-lo? Como será realizado o desenvolvimento do Clube? Quais os investimentos? Qual o prazo? Como tudo será colocado em prática? Quais e como serão os planos para o desenvolvimento da SAF?
Em meio aos planos para SAF, é importante conhecer quais os planos para o clube social. Como as dívidas serão quitadas? Quando e como será feito o repasse de recursos da SAF para o clube? Qual a participação do clube na gestão da SAF? Como a história e os símbolos do clube serão tratados e preservados (ou não)?
E finalmente, quanto será investido? Qual a origem dos recursos e qual a destinação? O que é para pagamento imediato das dívidas? Quanto será para investimento em estrutura e time?
Mas somos torcedores e não teremos acesso a maior parte destas informações. O mais provável é que uma meia dúzia de gestores do clube tenham conhecimento das negociações e conduzam o debate com o conselho deliberativo. Conselho deliberativo que deveria estar inteiramente ciente de todos os passos do negócio e ser o responsável por proteger os interesses do Clube.
Nem dá para pedir transparência em um negócio deste tipo. São negociações complexas e, normalmente, cercadas de sigilo e proteção aos dados de todos os envolvidos. O segredo, neste caso, é regra para que o negócio ocorra da melhor maneira.
Então, o que observar? Inicialmente é ter o cuidado para filtrar as informações que chegam. Tem muita “fake News” e, pior, muito “balão de ensaio”. Em outras palavras, tem muita gente falando o que não sabe, chutando ou até mesmo inventando histórias para se passar de conhecedor do assunto. Também tem gente que sabe muito bem o que fala e solta alguma coisa somente para verificar como será a reação da torcida. Com isso tudo, é não comemorar que o mega investidor apareceu, nem se desesperar porque um nome desconhecido é o novo favorito. É esperar, porque não temos participação direta no negócio e não adianta sofrer por antecedência. Quem morre de véspera é peru, não Galo.