A mãe do Atlético era uma heroína – Relatos inéditos da matriarca do Galo com memórias e fatos desconhecidos da literatura Atleticana
Por: Betinho Marques
2 abr 2023 23h07
Uma semana após ser homenageada pela Arena MRV com o espaço “Dona Alice – A Casa do Tropeiro”, um fato curioso surpreendeu: a homenagem não teve presente nenhum dos descendentes da matriarca atleticana. Por coincidência, desde novembro de 2022, conseguimos nos aproximar de algumas pessoas da família da Dona Alice e, ontem (2), conseguimos, mesmo no dia do primeiro jogo da final do Campeonato Mineiro, encontrar parte da terceira e quarta geração da família Neves.
GENÉTICA FORTE – A PRIMEIRA MULHER HABILITADA EM MINAS GERAIS
Logo na chegada, uma bela mesa de café com suco, bolo e biscoitinhos ao estilo mais nobre da casa de vó. Izabella Neves, professora de história, bisneta de Dona Alice, foi quem intermediou com muito carinho o bate-papo. Desde o início, sua mãe, Myrla Neves, ao estilo “poderoso” e forte do sobrenome, foi a anfitriã do encontro.
“Aqui quem domina são as mulheres. Homem aqui não apita nada”.
Para entender um pouco da árvore genealógica de quem fundou o Atlético, Dona Alice Ferreira – herdou, posteriormente, o sobrenome de Carlos Neves, seu esposo – nasceu em 4 de maio de 1871 e faleceu em 2 de junho de 1967, com 96 anos. Junto de Carlos Neves, um uruguaio que, segundo as netas não “mandava nada”, tiveram oito filhos (falecidos) e 14 netos. Hoje, estão respectivamente, na terceira geração da família Neves e vários bisnetos fazem parte da quarta fileira da família.
Sentados à mesa, Ana Lúcia, que estava com a filha Flávia, relatava histórias da “brava e turrona” Dona Alice.
“Perdemos nossos pais cedo e moramos na casa da vovó. Ela era forte, mandona e até implicante, dominava os ambientes e tinha atitude, coisa que o vovô (Carlos) não tinha. Vovó tinha uma pensão e assim sustentava a casa. A família não era rica, mas ela tinha respeito e confiança das pessoas, havia sempre pessoas influentes circulando por onde estava. Uma das filhas, a Dora Neves, minha mãe, foi a primeira mulher a tirar habilitação para dirigir em Minas Gerais”. A genética é muito forte.
DONA ALICE “ENFERMEIRA” ABRIGOU NA GRIPE ESPANHOLA E LIDEROU EQUIPE DA LBA
Em 28 de agosto de 1942, foi fundado no Brasil, pela então primeira-dama Darcy Vargas a LBA (Legião Brasileira de Assistência), um órgão assistencial público brasileiro, que tinha o objetivo de ajudar as famílias dos soldados enviados à Segunda Guerra Mundial, contando com o apoio da Federação das Associações Comerciais e da Confederação Nacional da Indústria. Num recorte de jornal da família, um enorme destaque foi dado para a escolha de Dona Alice para liderar a equipe da LBA em Belo horizonte.
Na coluna intitulada de “Bar do Ponto”, provavelmente de um jornal da década de 1940, uma celebração para o primeiro ano do Salão de costuras da LBA em Belo Horizonte destacou:
“Uma grande voluntária da Legião” – “Para quem? Não importa saber. Para as milhares de pessoas que a Legião está protegendo … Nem as voluntárias que se inscreveram no Salão de Costuras estão pensando nessa focalização. Trabalham no anonimato espontâneo. Querem servir o Brasil. Há, porém, um nome ali que não pode deixar de ser distinguido. É o de D. Alice Neves. Essa digníssima senhora é um modelo de trabalho e de devotamento que se incorpora à história da cidade. É um entusiasmo permanente pelas causas generosas”.
Mais à frente, a coluna destacou que as lutas, apesar dos cabelos que branquearam não mudaram o seu espírito sempre moço e sintetizou a força de Dona Alice:
“Tem a energia que desmente a fragilidade do seu sexo. A compassividade feminina, a ternura das mulheres não transforma D. Alice em lamentações, desânimos ou lágrimas. Exerce ação dinâmica. É providência, ação. Na gripe espanhola (Brasil entre 1918-1920), na improvisada Cruz Vermelha, Alice Neves punha logo seus serviços à disposição da coletividade“.
Sua neta e bisneta – Ana Lúcia e Izabella Neves – , respectivamente, contaram que a avó auxiliou os necessitados e os abrigava na sua pensão, durante o surto da pandemia da “Grande Gripe”. O recorte de jornal da família, guardado como uma boa vasilha Tupperware que não se empresta, confirmou os relatos:
“Foi, permanentemente assim, não só nos grandes momentos de aflição geral, como diante de todas as aflições alheias de que tinha notícia. Proprietária de pensão em Belo Horizonte, os seus hóspedes guardam na lembrança os episódios mais expressivos da energia, da capacidade de trabalho e da grandeza de coração da D. Alice Neves. Não era “dona de pensão” do estilo clássico … Era a mãe terna para os seus hóspedes, a conselheira sábia, a amiga sincera. Quando adoecia um estudante em sua casa, D. Alice Neves era enfermeira dedicadíssima”.
Não satisfeita com os afazeres da LBA, os cuidados com a pensão e os jovens estudantes, ela ainda queria mais, queria mais legionárias e queria ter tempo de cuidar do seu Atlético.
O ATLÉTICO NA VIDA DE DONA ALICE E SEUS DESCENDENTES
Todos sabem que Dona Alice foi a pioneira ao fundar o clube com mais 22 garotos, incluindo Mário Neves, um dos seus filhos. Neves também que formou a primeira torcida feminina, a primeira bandeira, costurou a primeira bola e bordou o primeiro símbolo. Contudo, poucos sabem como a linhagem seguiu. Filha de Ana Lúcia, Flávia é outra bisneta efusiva e firme da genética das “Neves”. Mãe de dois filhos que torcem para o time azul, ela conta que seus filhos acompanharam o “torcer” do pai, mas que apesar de respeitar as escolhas não os ajuda em nada que tenha que fazer passar perto de algo relacionado ao Cruzeiro.
“Já tenho que aceitar isso (eles torcerem para o time do pai), tenho que educar, xingar e tudo mais, mas pedir para levar para ver jogo ou entrar numa escolinha do Cruzeiro é mais forte que ser mãe. Antes deles virem ao mundo eu já tinha o Atlético na minha vida”, enfatiza Flávia com sorriso largo no rosto.
A família é quase na sua totalidade atleticana. Flávia ainda diz que a culpa dos desvios são os agregados que vão chegando. Ainda na família, ficamos observantes a tudo que se destacava, uma delas não tinha a camisa do Atlético vestida, logo a mãe da Izzabella, a Dona Myrla, uma figura simpática e que, além de preparar todos os quitutes para nos receber, também era a que tinha parte do arquivo da avó Alice.
“Os atleticanos são muito chatos, é tudo exagerado, é tudo demais. Vovó era assim com o Atlético, chata e mandona. Eu sou é AntiGalo”.
Dona Myrla não quis render os motivos, mas pelo breve relato, o que a deixava afetada é como o Atlético mudou e muda a rotina da família e dos seus amados entes. Diante disso, em dado momento, ameaçamos nos apropriar de algum documento raro de Alice. Entre um pedaço de bolo e um café, mas numa rápida distração, todas as fotos e relatos raros de jornais já estavam guardados. Dona Myrla não parecia ser tão “não” Galo assim. No desenrolar das histórias, uma fala marcante da neta Ana Lúcia:
“Vovó amava o Atlético assim como a maioria gigantesca da família, mas há quem conte que nos jogos do time, quem ousasse falar mal do Galo tomava “sombrinhada” e apanhava mesmo. Com ela perto não era possível criticar o Atlético… A casa dela era tomada de dirigentes do clube, até Juscelino Kubitschek frequentava, uma das filhas (Célia), era quem redigia os discursos do político”.
O carnaval e as festas de passagem do ano tinham dança, violão, sanfona e piano, tudo na casa de Dona Alice, na Rua Guajajaras. O local era muito frequentado por estudantes, que depois se tornavam referências profissionais naquela ainda bucólica Belo Horizonte. Nos registros de jornais, há passagens que contam a notoriedade de Alice e de seu casarão, uma espécie de segunda sede do Atlético perante aos dirigentes e jogadores do Atlético. Na casa das “Neves” e em mais de 90% do ambiente, o Galo vive e pulsa na energia que já chega aos tataranetos que não foram afetados pelos famigerados “agregados”.
ALICE NEVES ERA ENERGIA PARA O TIME VENCER E NÃO CONTRARIAR A MÃE DO ATLÉTICO
Segundo o relato da coluna “Bar do Ponto”, de jornal não identificado, Dona Alice não era apenas uma torcedora, mas uma força geradora de energias, estímulo para os jogadores, naquele tempo em que se fazia o esporte pelo esporte e quando não havia a “Bolsa de Craks”, quando o esporte era distração.
Jairo, um dos pertencentes do Trio Maldito, que se tornou médico depois, dizia:
“Dona Alice dava maior estímulo ao time do Atlético do que seus melhores treinadores. Iam para campo, pensando no Atlético, mas pensando em não contrariar Dona Alice Neves”.
O LEGADO DAS NEVES
A ideia da busca incessante pela história de Dona Alice foi apenas para enriquecer a literatura atleticana que, aos poucos, precisa saber que Dona Alice além de fundar o Atlético com mais 22 garotos, ainda amparou jovens estudantes, daí sua proximidade com a mocidade. Em sua pensão, participou solidariamente da acolhida às pessoas que em Belo Horizonte foram afetadas pela gripe espanhola. Alice Neves ainda foi líder da LBA – Belo Horizonte (Legião Brasileira de Assistência), em tempos de guerra. Não bastasse toda sua força, passou às mulheres um gene da participação ativa na sociedade, tendo uma das filhas (Dora Neves) sido, segundo relatos familiares, a primeira habilitada de Minas Gerais. Outra filha, Célia Neves, escrevia até discursos para JK.
Agora, em 2023, chegamos próximo da inauguração da nova Casa Atleticana, a Arena MRV, e a força não diminuiu. Dona Myrla Neves (neta de Alice), mãe da Izabella, além dos quitutes e bolos deliciosos, contou que estudou e formou em história com a própria filha. Ainda se gabou de, na época, ter tirado nota melhor. Myrla carrega os relatos de família com o mesmo zelo que guarda as fotos e jornais da matriarca atleticana. Mais que isso: ela não empresta vasilhame para quem quer levar a famosa “marmitinha” para casa, é dura na “queda” e ainda resiste em se declarar ao Galo.
“Se quiser levar é no saquinho, vasilha não”
Ao fim da prosa, Flávia (bisneta de Alice) diante dos outros bisnetos – Alexandre, Matheus e João Maurício -, disse de forma imponente:
“Nós queremos conhecer a Arena, ver o espaço da nossa bisavó. Se não deixarem a gente ir, eu que moro perto, vou providenciar uma tirolesa e vou cair no colo do Hulk”.
As histórias foram uma verdadeira festa atleticana chefiada pelas mulheres Neves, típicas da vanguarda e que contrariavam os membros da “Tradicional Família Mineira”. Para irmos embora amigos da família, não podíamos esquecer jamais do início de tudo:
“Aqui quem domina são as mulheres. Homem aqui não apita nada … E se quiser levar alguma coisa, que tragam o saquinho”, pois vasilhame não se empresta na casa da Dona Myrla Neves.