Coluna Preto no Branco: Coisas de vestiário
Por: Max Pereira
Vestiário, substantivo masculino, é o lugar em que os membros de uma empresa, associação, clube, companhia teatral etc., trocam e guardam por um período de tempo a roupa, chapéus, calçados e outros acessórios. Pode significar também a pessoa responsável pelo guarda-roupa de uma organização e, mais especificamente, como era chamado aquele que cuidava da rouparia de um convento.
O grande escritor Luiz Fernando Veríssimo, brincando com o orgulho masculino gaúcho escreveu a seguinte pérola que explica o sentido absolutamente particular que o vestiário adquiriu no universo do futebol: “Gaúcho que é gaúcho não deixa sua mulher mostrar a bunda para ninguém. Nem em baile de carnaval. Gaúcho que é gaúcho não mostra a sua bunda para ninguém. Só no vestiário, para outros homens, e, assim mesmo, se olhar por mais de trinta segundos sai briga”.
Diferentemente dos vestiários de clube de lazer e até mesmo de uma organização qualquer, o vestiário dos clubes de futebol tornou-se um local fundamental para a sedimentação do espírito de grupo e do cultivo da cumplicidade entre os seus membros. Assim, a palavra vestiário no futebol adquiriu um significado muito maior. Tornou-se sinônimo de grupo, de ambiente.
Recentemente, o técnico Lisca, hoje no Sport Recife, revelou em uma entrevista quais seriam as principais razões que levaram Cuca a querer sair do Atlético e a não continuar à frente da equipe alvinegra. Sem surpresa para quem conhece minimamente os interiores de um clube de futebol, as razões, segundo Lisca, que estariam no centro da decisão de Cuca de abandonar o barco atleticano estariam ligadas a questões de vestiário.
Se o vestiário é o lugar onde homens mostram a sua bunda para outros homens, é de se supor que para atletas que têm que jogar juntos, trabalhar juntos, em equipe e com harmonia, porque se um falhar estará comprometendo não apenas o seu sucesso, mas também o do grupo e de cada um de seus companheiros em particular, o vestiário passou a ser no futebol mais que o local que os reúne fisicamente. Tornou-se o seu próprio corpo, um amálgama, que lhes confere uma identidade única, homogênea. E, muitas vezes, os tornam uma família.
Não atoa, pois, Lisca disse que acontecem coisas no vestiário que lá devem permanecer. E, por isso, jamais revelaria o que Cuca havia lhe confidenciado. Vestiário no futebol, portanto, é muito mais do que um espaço físico onde se troca de roupa ou se guarda algum acessório. A intimidade evidenciada entre as paredes de um desses locais por um grupo de homens nus acaba expondo muito mais que os seus corpos desnudos. Escancara a alma.
Muitos jogadores são ótimos de vestiário. Outros nem tanto. Cada um de nós é um ser único no cosmos. Os irmãos gêmeos, por mais parecidos que sejam entre si, sempre apresentam alguma diferença, indicando que cada um é uma pessoa única. Os sósias, então, são apenas pessoas muito parecidas fisicamente. Mas, são outras pessoas, diferentes. Com isso quero dizer que todo e qualquer grupo, por mais unidos e identificados que sejam ou se mostrem os seus membros em razão de algum propósito, são heterogêneos e, por isso, geri-los requer habilidade, tato, parcimônia, argúcia e, no caso do futebol, conhecimento da alma do boleiro.
Muitos jogadores que passaram pelo Atlético e que, aos olhos de sua exigente torcida, entregaram muito pouco dentro de campo, foram fundamentais no vestiário alvinegro. Patricão da Massa e Nathan, o Pescador, são exemplos clássicos do jogador bom de grupo que muito contribuiu para tornar sólido o ambiente entre seus companheiros intramuros da cidade do Galo.
Quem conhece a intimidade dos vestiários certamente já testemunhou tanto ambientes de compadrio, quanto de tensão e de desarmonia. Já viu também cenas curiosas, algumas tristes, outras surreais. Existem jogadores que não entram em campo, por exemplo, sem antes cumprir um ritual. Até masturbação minutos antes de pisar o gramado pela primeira vez faz parte da ritualística. E, claro, entrar com o pé direito. Se por uma razão ou outra não conseguirem cumprir o seu ritual particular acabam se desconcentrando e jogando muito mal.
E quantos jogadores tiveram que ser substituídos minutos antes de entrar em campo, sacudidos por crises de ansiedade e pânico, muitas vezes acompanhadas por diarréias incontroláveis? Para muitos é inimaginável o que a paúra, i.e., o medo intenso, o pavor, pode fazer com uma pessoa. E qual é a razão desse medo? Medo de quê?
O peso da camisa, a mudança de ambiente, de cidade, de estado, de país, a cobrança exagerada e cruel de torcida, a crítica injusta e covarde de algum “formador” de opinião, a troca de um treinador e, consequentemente a mudança da ideia de jogo, tudo isso, são coisas que podem minar o ambiente, corroer o vestiário de um clube e, até mesmo, determinarem um corte drástico e definitivo na carreira de um jogador.
Tem jogador que assimila a reserva numa boa. Tem jogador que, ao contrário, se irrita e não aceita sequer disputar a titularidade com algum companheiro. Nada de anormal nisso. O atleticano e amigo Adivaldo contou-me certa vez que ficou incomodado com o fato de a sua filha Tereza Raquel, ex-jogadora de vôlei do Minas Tênis Clube, de talento reconhecido e pertencente a um dos grupos mais vencedores daquele esporte que o tradicional clube belo-horizontino já formou, estar constantemente na reserva, quando o seu potencial indicava que ela merecia, ao menos, mais oportunidades como titular.
Assim, o pai da companheira da musa Ana Paula e de outras craques do vôlei brasileiro da época foi cobrar do treinador uma explicação e ouviu dele o seguinte: eu tenho que fazer a Tereza Raquel ficar com raiva para que ela, ao entrar na quadra, renda o máximo que pode e que sabe. Assim, a deixo roendo as unhas de raiva e, quando a faço entrar no jogo, ela arrebenta. No futebol existem muitas Teresas Raquel. Atletas sanguíneos, viscerais. Éder Aleixo e Edmundo, o Animal, são exemplos clássicos. Para jogarem bem precisavam estar plugados em alta tensão.
Assim, se um time troca de treinador, vê o seu grupo modificado ainda que pontualmente em razão de saídas e de chegadas, cai de produção e mostra em campo um futebol sofrido, muitas vezes desarticulado e impotente, e seus jogadores, jogo após jogo, vêm exibindo um nervosismo anormal, um emocional dançado e, por isso, vêm colecionando escolhas equivocadas e acumulando erros que em outras circunstâncias não estariam acontecendo, é preciso que quem comanda o futebol e o próprio clube no todo, percebam que existem coisas de vestiário que precisam ser identificadas e trabalhadas, eliminando aquelas que estariam comprometendo o rendimento da equipe. Enfim, existem coisas e “coisas” de vestiário. Existem “coisas” que o Atlético tem que identificar e solucionar.
ESTE TEXTO E DE RESPONSABILIDADE DO AUTOR, NAO REFLETE, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DO PORTAL.