Por: Max Pereira @MaxGuaramax2012
O que o Atlético considera como direitos inalienáveis e irrenunciáveis? O que o Galo acha que, com a SAF, deve e pode mudar e o que o clube entende que não deve e nem pode mudar?
A lei da SAF, sancionada no mês de agosto de 2021, não só introduz inovações marcantes no modelo societário dos clubes de futebol, como deixa em aberto várias questões preocupantes, como também outro tanto de possibilidades nebulosas atinentes ao futuro da associação original.
No ensaio “A SOCIEDADE ANÔNIMA DE FUTEBOL E SUAS NUANCES. REFLEXÕES INICIAIS ACERCA DA ENTRADA EM VIGOR DA LEI N° 14.193/2021”, publicado em 17.9.2021, João Marcos Guimarães Siqueira, membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, disseca com maestria as novidades trazidas por esta lei, notadamente em relação à tributação e às relações da SAF e do clube originário com as entidades que comandam o esporte e, especificamente, em relação à delimitação da sucessão trabalhista e ao modo de quitação das suas obrigações, ao tratar da estruturação do passivo trabalhista dos clubes ou pessoas jurídicas, seja na forma do Regime Centralizado de Execuções, seja através da Recuperação Judicial e Extrajudicial do Clube ou Pessoa Jurídica Original.
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Não se pode deixar de reconhecer que a Lei da SAF tem lá os seus pontos positivos. E um deles, nos lembra Siqueira, reside no fato de que, ao visar a importação para o futebol de um mecanismo de controle mais rígido e seguro, o legislador buscou dar às Sociedades Anônimas de Futebol (SAF) o mesmo tratamento empregado às Sociedades Empresariais constituídas na forma da Lei 6.404/76.
Conforme nos alerta a Exma. Desembargadora Ana Paula Pelegrina Lockmann, em seu artigo “Ato das Execuções Concentradas – Bom para o Atleta, Bom para o Clube e bom para a Justiça”, publicado na obra “Direito Desportivo Aspectos Penais e Trabalhistas Atuais”, “o fenômeno do esporte movimenta a paixão de multidões, une os povos, está presente na vida cotidiana, jornais, revistas, televisão, internet, nas conversas entre amigos etc. É um cenário atrativo à ação da lógica capitalista no mundo do esporte”.
Por isso, o futebol vem passando por transformações que o levaram a se mercantilizar e a se tornar hoje uma grande indústria capitalista. Em outras palavras, um negócio multibilionário, sistêmico e altamente complexo.
Mas, ainda assim, persiste no futebol em geral a figura do dirigente amador, sem vínculo empregatício e sem remuneração. Ou seja, permanece uma forte presença do amadorismo nas administrações de inúmeros clubes. A má gestão e um endividamento crônico e irresponsável passou a ser a marca registrada do futebol brasileiro.
Nesse sentido, continua Siqueira: “A Constituição Federal, em seu artigo 217, conferiu expressa autonomia às entidades esportivas, mas no plano prático essa mesma autonomia em muitos casos tem servido como ponte intransponível à responsabilização pessoal dos dirigentes de agremiações, a despeito da previsão do próprio artigo 27 da Lei Pelé, como também do artigo 24 da Lei do Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (Profut), criado com a aprovação da Lei n° 13.155/2015.
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O Código Civil de 2002 regulamenta as associações em exatos nove artigos, do artigo 53 ao 61, sem que se possa extrair do texto legal conceitos claros de governança, compliance e transparência. É exatamente na lacuna de disposições do próprio Código Civil que se buscou com a Lei da Sociedade Anônima do Futebol estabelecer, através de uma nova fotografia societária, um vínculo direto com as disposições inerentes à Lei n° 6.404/76 (Lei da S/A), observados os princípios de transparência, boas práticas corporativas e um rígido compliance”.
Siqueira destaca ainda que “a governança corporativa, entendida como um dos princípios que geram valor de longo prazo, é um sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselhos de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas”.
Mas, a simples alteração do modelo societário não resolve tudo e nem é garantia de nada. A qualidade da gestão é o pulo do gato. Ou seja, sem uma gestão de qualidade não há como se garantir resultados de excelência e, nem tampouco, equilíbrio financeiro.
É preciso, portanto, ter em mente que os desafios não serão poucos e nem simples. São vários os cuidados que o clube, na condição de associação originária, deve ter para que essa nova realidade imposta pela Lei 14.193/2021 não seja um desastre, vez que a constituição da Sociedade Anônima do Futebol é muito mais do que uma simples mudança de modelo societário. Alem de uma transformação estrutural e organizacional profunda, ela provoca uma mudança radical na vida e na história do clube.
A SAF, uma vez constituída, passa a ocupar o lugar do clube que lhe deu origem nas relações com as entidades de administração (CBF, por exemplo), bem como nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol. Com isso, a Sociedade Anônima do Futebol tem o direito de participar de campeonatos, copas ou torneios em substituição ao clube.
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Assim, além dos direitos de participação em competições profissionais, os contratos de trabalho, de uso de imagem ou quaisquer outros contratos vinculados, direitos e deveres decorrentes de relações estabelecidos com o clube, relativos à atividade do futebol, são obrigatoriamente transferidos à Sociedade Anônima do Futebol.
Aqui é forçoso observar que clube e a SAF devem entrar em acordo sobre a exploração de marcas do clube e qualquer outra propriedade intelectual porventura existente. Os bens e direitos poderão ser transferidos à Sociedade Anônima do Futebol em definitivo ou por prazo determinado. Importante destacar, ainda, que a transferência desses direitos e de qualquer patrimônio para a SAF independe de autorização de credores liberando o patrimônio do clube para gerar receitas para pagar esses mesmos credores.
Caso o estádio, centro de treinamento, e outras instalações não sejam transferidas para a SAF, o clube e a SAF deverão entrar em acordo sobre as condições para uso das instalações, o que já não mais se aplica ao Atlético.
A Sociedade Anônima do Futebol, conforme a exegese do Art. 2.o, §2.o, inciso VII, deverá emitir obrigatoriamente ações ordinárias da classe A para subscrição exclusivamente pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu. Já o § 3º do mesmo artigo prescreve que as ações ordinárias da classe A devem corresponder a pelo menos 10% (dez por cento) do capital social votante ou do capital social total e que o voto afirmativo do seu titular no âmbito da assembleia geral será condição necessária para a Sociedade Anônima do Futebol deliberar sobre:
1) alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de qualquer bem imobiliário ou de direito de propriedade intelectual conferido pelo clube ou pessoa jurídica original para formação do capital social;
2) qualquer ato de reorganização societária ou empresarial, como fusão, cisão, incorporação de ações, incorporação de outra sociedade ou trespasse;
3) dissolução, liquidação e extinção;
4) participação em competição desportiva sobre a qual dispõe o art. 20 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998.
Por sua vez o § 4º determina que, além de outras matérias previstas no estatuto da Sociedade Anônima do Futebol, depende da concordância do titular das ações ordinárias da classe A, i.e., do clube originário, independentemente do percentual da participação no capital votante ou social, a deliberação, em qualquer órgão societário, sobre as seguintes matérias:
I – alteração da denominação;
II – modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; e
III – mudança da sede para outro Município.
Por outro lado, o 5º estatui que o estatuto da Sociedade Anônima do Futebol constituída por clube ou pessoa jurídica original pode prever outros direitos para o titular das ações ordinárias da classe A, enquanto o § 6º determina que depende de aprovação prévia do clube ou pessoa jurídica original, que é titular de ações ordinárias da classe A, qualquer alteração no estatuto da Sociedade Anônima do Futebol para modificar, restringir ou subtrair os direitos conferidos por essa classe de ações, ou para extinguir a ação ordinária da classe.
Este artigo não pretende esgotar o tema, mesmo porque é impossível fazê-lo em apenas algumas linhas, e, sim, alertar ao leitor quanto à sua complexidade e chamar a sua atenção em relação à necessidade imperiosa do Atlético, na condição de clube originário, tomar cuidados especiais a fim de preservar seus direitos, sua história, sua identidade e suas propriedades intelectuais como, aliás, a própria legislação que regulamenta o instituto da Sociedade Anônima do Futebol lhe faculta.
Se de um lado, a profissionalização da gestão e o trato responsável e equilibrado das finanças são subprodutos colimados pela SAF que devem ser festejados, de outro existem riscos que devem ser percebidos e eliminados.
A SAF atleticana traz inovações em relação às outras experiências de que se têm notícia, particularmente em relação às dívidas do clube. A SAF teria assumido o passivo da associação e a hipótese da recuperação judicial ou extrajudicial, pelo menos por hora, não faz parte dos planos do novo Atlético.
Mas, o que se sabe sobre as âncoras que garantiriam os direitos pétreos do Glorioso? Por que um novo e moderno estatuto não foi apresentado e nem aprovado pelo clube antes da constituição de sua SAF?
É sabido que no mundo corporativo é práxis salutar e essencial ao sucesso dos negócios blindar as informações estratégicas. Mas, é possível proteger os chamados segredos de negócio e, ao mesmo tempo, prezar pela transparência? Entendo que sim.
Por isso, à guisa do que a própria legislação preconiza, como observado ao longo deste ensaio, entendo ser direito do torcedor, sócio ou não, conselheiro ou não, conhecer determinados detalhes da constituição da SAF alvinegra e da cessão do seu controle acionário. Assim, não custa perguntar:
Além dos pouco mais de 75% da Arena e da Cidade do Galo o clube teria cedido algo mais à SAF? O Atlético, aqui entendido como associação originária, tem algum poder de veto garantido nas assembleias e no Conselho de Administração da SAF? Se sim, qual ou quais? O que existe no estatuto constitutivo da SAF e no instrumento de sessão de seu controle acionário em relação aos direitos do clube?
O que o Atlético considera como direitos inalienáveis e irrenunciáveis? O que o Galo acha que, com a SAF, deve e pode mudar e o que o clube entende que não deve e nem pode mudar?
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, o pensamento do portal Fala Galo.